Os Criminólogos Também Amam
Criminologia

Os Criminólogos Também Amam



Recebi um lindo presente da Mari. Com a devida - não sem (muita) relutância - autorização, compartilho no Antiblog.
Mais uma demonstração de que seu blog deveria estar ativo...

"O professor já havia começado a aula quando ela entrou pela porta. Numa roupa clara, trazia os cabelos ainda úmidos e, há poucas semanas, escuros.
Ele explicava um exercício aos alunos, detalhando datas e momentos, ensinando termos e questões tão técnicas sobre a matéria que tudo o que ela conseguia pensar era que realmente não deveria estar permitindo que seu pensamento lhe levasse para longe. Ela percebia que hoje ele estava especialmente entusiasmado. Tinha o semblante alegre e o corpo agitado. Às vezes atropelava as palavras, formulando frases sem sentido, que somente ela saberia decifrar. Os alunos, um pouco perdidos e muito curiosos em relação ao professor, eram para ela figurantes daquele espetáculo, espécie de falsos destinatários daquele conhecimento. Ela realmente gostava de acreditar que cada uma daquelas frases em que as palavras se colocavam umas sobre as outras, daquelas ironias, daquelas mini-histórias que ele contava enquanto se deliciava lecionando, tinham a ela como destinatária e ponto. Certa vez quando conversavam, ela - que em nada gostava de demonstrar o aspecto pretensioso de sua personalidade - chegou a deixar escapar que sentia ter importante participação em cada uma daquelas aulas. Ele, imediatamente - como ela já supunha - respondeu que não era raro a euforia tomar-lhe conta no decorrer da aula a ponto de fazê-lo inclusive esquecer a presença dela ali. Ela argumentou um pouco, mas sucumbiu. Não precisava de sua autorização para continuar convicta de que ele era todo para ela, até quando dizia que a comunicação naquele palco era dele, para suas idéias (principalmente) e, claro, para os adolescentes que, com olhos admirado(re)s, o ouviam.
Ela conseguiu, enfim, se disciplinar, passou a prestar atenção no conteúdo que ele explanava. Tentou afastar a ideia de que naquele exato instante, entre sentenças condenatórias e antecedentes criminais, o corpo dele ainda deveria estar sofrendo os efeitos do vinho que haviam bebido juntos na noite anterior. Era uma pena, mas ela realmente tinha que ater-se ao conhecimento que ele ali expunha e abandonar aquilo que lhe dava tanto prazer: a forma como ajeitava os cabelos (insistentemente revoltos), como respondia à indagação pouco inteligente de um aluno, ou como se desvelava meticulosamente aos poucos diante daqueles espectadores.
Decidida, abriu o caderno e começou a anotar linha a linha. A menina sentada ao seu lado direito de vez em quando perdia alguma coisa e lançava ligeiros olhares ao caderno dela. Ela, calada, sorria e pensava que ainda havia alguma vantagem em não aparentar a verdadeira idade que tinha. Podia assim frequentar os bancos acadêmicos sem ser muito notada e, em realidade, sua aparência jovem mais contrastava no papel de professora do que no de aluna dentro de uma sala de aula.
Foi então que ele disse algo que não lhe soou bem. Ela talvez se tenha confundido - aprendera a contar prazos processuais há muito pouco, é verdade - mas o fato é que não pôde se calar. Carregava consigo o que os casais em geral cultivam, um zelo pelo que o outro diz e uma ânsia de corrigir o inadequado, o que, muitas vezes, aniquila a própria espontaneidade daquele que fala. Mas não pôde se furtar de dizer. Não pôde. Ele, então, um pouco desconcertado - como sói acontecer quando interrompem seu raciocínio - mas ao mesmo tempo sabendo que não podia deixar de ouvi-la, resolveu lhe dar atenção. Ela prontamente enrubesceu, pois não sabia explicar a idéia que lhe saíra repentinamente e, naquele exato instante, como as pessoas que não sabem o que dizer e ?se refugiam no tempo?, ela se refugiou na voz, ou na ausência dela. Já havia dois dias que emudecera por força de uma forte dor de garganta e naquela manhã, saía-lhe apenas uma nesga de som e mais nada, o que a impossibilitava, infelizmente, de dar a explicação completa sobre a contestação que fazia àquela colocação sobre a matéria.
Para terminar o assunto - afinal havia muitos olhos atentos àquele diálogo - ele disse que resolveriam o problema em casa, tendo em vista que ela, sua namorada, estava afônica e não podia defender seu ponto de vista. Quando ele disse aquilo, a menina sentada ao lado direito, que sequer piscava ao olhar para ele, imediatamente virou cabeça, corpo e membros na direção dela. Analisou-a de cima a baixo. Prestou atenção na calça jeans justa e blusa branca que vestia, nas botas marrons que calçava. Fitou o cabelo liso, escuro e agora já seco. Girou mais um pouco o olhar, chegando às costas da cadeira, desejava ver que espécie de casaco vestiria a ?namorada do professor?.
Na verdade tudo o que passava na cabeça da menina era: como podia isso? O que faria ela ali, como se fora uma aluna qualquer? E então foi invadida pela indagação de se efetivamente seria ela uma aluna qualquer. Perguntava-se obsessivamente como ela, com botas, calça justa e blusa branca, com corpo, rosto, trejeitos e roupas de aluna qualquer, poderia ser a namorada dele? E então não se conteve. Enquanto ela se recompunha após as palavras dele, a menina lhe perguntou, com feições de espanto e curiosidade: é verdade isso que ele disse? E ela, como se já esperasse, prontamente respondeu: claro, não está notando a minha voz? Estou com uma brutal dor de garganta, realmente sem conseguir falar quase (e por dentro gargalhava, por obrigá-la a ser mais explícita). Não, não, diz a menina - mais intrigada que sentada ao lado direito agora - a outra coisa, isso de que és namorada dele? Sim, responde ela - divertindo-se muito, mas, sobretudo, contendo-se - é verdade. Quase sem pausa entre um e outro questionamento, a menina então faz a pergunta que realmente mais importa: Mas já és formada? (apesar da curiosidade conseguira maquiar a pergunta e fazê-la de forma a não expor tão descaradamente o que definitivamente queria saber). Sim, já sou, respondeu ela, com a pouca voz que lhe restava no fim daquela manhã chuvosa. A menina aliviou-se por inteiro. Voltou-se novamente para a classe, desvirando o corpo lentamente. A respiração parecia querer voltar ao normal. Só o que conseguia pensar era que ela não era como a menina, não era uma aluna como as outras, agora, enfim, sabia.
E ela, um pouco por soberba e um pouco para deixar claro que não era simplesmente uma entusiasta dele - assim, deliberadamente ao menos - resolveu dizer à menina o que se passava, que era professora em outro lugar e que ambos lecionavam a mesma matéria. Por isso, só por isso, ela estava ali, por mais nada. A menina sorriu simpática, pois agora tinha tudo claro. Evidentemente o professor jamais se interessaria por uma aluna qualquer. Ela também era professora, somente uns anos mais nova e menos experiente, mas apenas isso. E o corpo também de menina, claro, mas era só.
Porém o que a menina jamais saberia é que quando os dois se aproximaram ela se encontrava exatamente ali, no lugar em que agora ocupava a menina. Sentava na primeira fila e talvez tivesse a sua idade (quantos anos tinha mesmo ela há seis anos atrás?). Baixou os olhos ao caderno e riu-se muito daquilo tudo, pensando que, definitivamente, jamais fora uma aluna qualquer, não tinha mesmo talento para isso. E o alívio agora era todo dela."
[por Mari Weigert]



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