Poder negocial...: Meta XXI, em busca de um milhão de presos!? Parte II
Criminologia

Poder negocial...: Meta XXI, em busca de um milhão de presos!? Parte II


Conforme prometido, hoje eu prossigo com o relato (tópico) da palestra sobre Poder Negocial.
Nem sempre as circunstâncias da fala possibilitam a quem fala manter o projeto original. Assim, alguns dados foram referidos por alto, omitindo-se durante o discurso a fonte mais precisa.
O post pode ser útil para indicar ao leitor esta fonte e permitir que forme sua opinião de maneira mais independente.


  1. Começo reproduzindo um texto de Loïc Wacquant (As duas faces do gueto, São Paulo, Boitempo, 2008, p. 123): "Após abandonar o programa social fordista-keynesiano em meados dos anos 1970 e o processo de esfacelamento do gueto negro como instrumento de controle de casta, os Estados Unidos lançaram-se em um experimento sócio-histórico singular: a incipiente substituição da regulação estatal da pobreza e dos distúrbios urbanos, frutos da crescente desproteção social e do conflito racial, por seu gerenciamento punitivo por meio da polícia, da Justiça e do sistema correcional [grifo nosso]"
  2. Segue Wacquant, acrescentando que a consequência inevitável desta escolha não poderia deixar de ser a ascensão descomunal do Estado Penal, nas três décadas seguintes: "Expansão vertical via hiperinflação carcerária: a quadruplicação da população encarcerada em 25 anos, devida basicamente ao aumento das detenções, fez dos Estados Unidos o inigualável campeão mundial em aprisionamento, com 2 milhões de pessoas atrás das grades e 740 presos por 100 mil habitantes - de seis a doze vezes as taxas de outras sociedades avançadas -, embora o índice de criminalidade permanecesse em estagnação e depois em declínio durante o período".
  3. Convém rematar o registro dos dados, ainda com base nas informações de Wacquant, sublinhando: "Expansão horizontal via dilatação da suspensão condicional da pena, reestruturação da liberdade condicional e ampliação das bases de dados eletrônicas e genéticas, para propiciar maior vigilância à distância. O resultado desse 'alastramento' da rede penal é que hoje 6,5 milhões de norte-americanos estão sob supervisão da justiça criminal, o que representa, na população masculina, um em cada vinte adultos (mais de 35 anos), um em nove adultos negros e um a cada três negros com 18 a 35 anos."
  4. Os números impressionam, mas não devem ser avaliados de maneira isolada.
  5. Albert Alschuler e Andrew Deiss, professores da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago (mencionados no último post), citam dados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos para salientar que, em 1992, nos 75 maiores condados norte-americanos 94% de todas as condenações por delitos graves decorreram de "declarações de culpabilidade". Em Nova York, naquele ano, o índice registrado foi de 93% (obra citada, p. 189).
  6. De acordo com a fisiologia do Sistema de Justiça Criminal em vigor nos Estados Unidos a população encarcerada não está nas cadeias e penitenciárias, salvo por ordem judicial. E também a vigilância de natureza criminal, que submete mais de três milhões de pessoas, presume o funcionamento ordinário desse mesmo sistema, que no ontem recentíssimo e no hoje depende dos acordos diretos entre MP e Defesa/acusado em torno da assunção de culpa e da aplicação da pena, sem provas, alegações e confrontações com a presunção de inocência.
  7. Os artigos 278 e 279 do projeto de lei 156 do Senado, na versão aprovada na CCJ e disponível no link do post anterior, correspondem à condenação direta.
  8. Pelo artigo 278, o MP e a Defesa poderão requerer ao juiz "a aplicação imediata de pena nos crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse 8 (oito) anos", desde que verificadas algumas condições, a saber: a) a confissão, total ou parcial; b) o requerimento de que a pena privativa de liberdade seja aplicada no mínimo legal...; c) expressa dispensa das provas.
  9. Convém logo destacar um ponto: o consenso penal em torno da condenação, com a possibilidade mesmo de imposição de pena de prisão, ainda que de curta duração, está regulado como uma espécie de procedimento (Capítulo III - Do procedimento sumário). Voltaremos a isso no próximo post.
  10. O que me parece fundamental, no atual contexto, diz com duas questões incontornáveis: a) o nosso regime de direitos fundamentais autoriza a condenação sem provas e por este meio a imposição de graves restrições às liberdades públicas, afastando-se a proteção da presunção de inocência? b) qual a razão de política criminal e judiciária que busca legitimar, justificar ou explicar a referida eleição (pela condenação direta)?
  11. Neste post tratarei do item "a".
  12. Em minha tese de doutorado (Transação Penal, 2ª ed., RJ, Lumen Juris, 2006, p. 189) avancei a seguinte hipótese, que transcrevo: "A irrenunciabilidade do direito fundamental, pelo particular, é o antecedente lógico da indisponibilidade e no campo jurídico invalida, por contradição com a Constituição, qualquer ato tendente à abdicação dos direitos individuais."
  13. Então, em 2003, e a propósito de analisar a transação penal da Lei nº 9.099/95, trabalhei neste nível para destacar a "irrenunciabilidade e indisponibilidade do exercício do direito de defesa no processo penal brasileiro" (obra citada, p. 70).
  14. Creio ter antecipado em sete anos este debate quando escrevi sobre "funcionalidade e eficiência: a transação penal desliza em direção à prisão" (idem, p. 16-28) para diagnosticar tendências e argumentos que o funcionalismo penal inflitrava na doutrina brasileira, em busca de apoio ao projeto de implantação da negociação em torno da pena privativa de liberdade.
  15. Tenho certeza de que meu livro mais conhecido - e do qual mais gosto - é o Sistema Acusatório. Para mim, porém, o trabalho de que mais me orgulho, ao lado da investigação sobre interceptações telefônicas e a jurisprudência do STJ, é este, Transação Penal.
  16. Isso porque, percebendo a energia liberada em prol da introdução entre nós do plea bargaining, busquei interrogar o estatuto de nossos direitos fundamentais, ainda antes da confrontação teórica entre âmbito normativo e tutela de bem jurídico no cenário destes direitos, no campo do processo penal, para assinalar que a proteção dos direitos fundametais em uma sociedade semi-periférica há de ser interpretada como limite às forças opressivas que historicamente bloquearam aos grupos mais vulneráveis o acesso aos bens da vida.
  17. A criminologia crítica produzida na América Latina comprova empiricamente o torpedeamento das classes e dos grupos sociais mais frágeis via sistema penal (Zaffaroni, En busca de las penas perdidas, 4ª reimpressão, cap. 1, Ediar, Buenos Aires, 2005).
  18. Neste contexto, assegurar o núcleo dos direitos fundamentais em cada caso é estratégico. E não se pode duvidar, à luz dos incisos LIV, LV e LVII do artigo 5º da CR, que a presunção de inocência, o direito ao processo e, consequentemente, o direito à prova sejam direitos fundamentais!
  19. E se o são, em âmbito penal, é assim por quê?
  20. Entre nós a impossível coerção sobre a presunção de inocência obedece à lógica de impor limites ao encarceramento como estratégia histórica de controle social. E é contra esta estratégia que o devido processo penal se instituiu no Brasil, pós 1988.
  21. A tese da irrenunciabilidade (naturalmente que pelo próprio titular do direito) a determinados direitos fundamentais, para preservar a essência destes direitos, não é nova.
  22. Na palestra alertei para o exemplo: João, denunciado por homicídio doloso, se dirige ao juiz da Vara Criminal e, dizendo-se confiante em seu julgamento, requer seja dispensado do Júri para ser julgado no mérito pelo juiz. De antemão o acusado afirma que aceitará qualquer resultado, até mesmo a condenação.
  23. Indago: em semelhante hipótese a autonomia de vontade de João produz uma manifestação jurídica válida e apta a dispensá-lo do Júri, garantia constitucional prevista no inciso XXXVIII do artigo 5º?
  24. Somente a resposta afirmativa a esta questão pode justificar a declaração da constitucionalidade da condenação direta, prevista nos artigos 278 e 279 do Projeto! Até onde sei, este não é o rumo ajustado no Brasil, quer na teoria, quer na prática dos tribunais, acerca do Direito ao Júri.
  25. E a negativa não é uma opção, mas decorre do estatuto dos direitos fundamentais que é adotado no Brasil!
  26. Concluo o post de hoje sustentando a inconstitucionalidade da previsão.
Mas não é só isso! Nos próximos posts seguirei com a análise elaborada na palestra.
Bom dia!



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