Poder negocial...: Meta XXI, em busca de um milhão de presos!? Parte III
Criminologia

Poder negocial...: Meta XXI, em busca de um milhão de presos!? Parte III


Na sequência dos tópicos tratados no Seminário promovido em São Paulo, no dia 02 de junho último, pelo IBCCRIM, AJUFE e AMAG, sobre o projeto de Código de Processo Penal em tramitação no Senado (link no primeiro post da série), cuidei de abordar as razões latentes da previsão da negociação direta em torno da pena, conforme está nos artigos 278 e 279 do PLS 156 (ver a referência aos artigos no post anterior).


Em síntese, ao lado dos motivos manifestos, que são identificáveis na Exposição de Motivos, há questões da ordem das políticas criminal e judiciária que estão ocultas, mas que dizem com a realidade do funcionamento cotidiano do Sistema de Justiça Criminal, suas demandas e as articulações um tanto inevitáveis com as pressões de grupos sociais por maior controle.

  1. Como no post anterior, começarei citando dados. Dados coletados pela socióloga Julita Lemgruber para apresentação no Painel 4, Fora da lei, abaixo da vida, do Seminário "A Justiça que queremos", promovido pela Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), em 15 de agosto de 2008.
  2. A professora Julita buscou em fontes oficiais (Ministério da Justiça) os números que falam com eloquência: a população carcerária no Brasil, em 1995, era de 148.760 pessoas. Em 2007 esta população havia saltado para 422.590 pessoas, em uma taxa correspondente a 221 presos a cada 100 mil habitantes, contra 93 presos a cada 100 mil pessoas em 1995.
  3. Outro número interessante que se extrai da pesquisa diz com a evolução das pessoas sob vigilância, no Brasil, pelo Sistema Criminal, sem encarceramento. A socióloga destaca que em 1995 havia 80.364 pessoas cumprindo penas e medidas alternativas (transação penal e suspensão condicional do processo, conforme os artigos 76 e 89 da Lei dos Juizados Especiais Criminais).
  4. Este número saltou para 498.729 pessoas em 2008 (maior, portanto, que o de presos, que era de 439.737).
  5. Para o que nos intessa, porém, o que vale, efetivamente, é somar: Em 2008 havia no Brasil 938.466 pessoas submetidas, de uma forma ou de outra, ao Sistema Criminal.
  6. Os números revelam o que Nilo Batista denuncia sempre, com lastro em dados registrados oficialmente, mas que parecem tocar pouco à sensibilidade dos juristas: há no País, inegavelmente, uma política de Estado Penal, que se agudiza se forem somados os números dos mortos em confronto com a polícia, especialmente nos grandes centros urbanos (vale, por todos, ler "Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro", de Ana Luiza Pinheiro Flauzina, Contraponto, Rio de Janeiro, 2008).
  7. O Brasil encontra-se, portanto, em uma encruzilhada e deve escolher entre a amplificação dos "controlados pelo sistema" ou a adoção de estatégias que façam recuar estes números de forma significativa, mediante procedimentos que evitem a todo o custo a intervenção penal, o processo criminal, a aplicação imediata ou postergada de sanções penais de qualquer natureza.
  8. Respondendo ao professor Gabriel Sampaio, da PUC de São Paulo, que estava na plateia do Seminário, propus que olhássemos com maior atenção as iniciativas de mediação e justiça restaurativa (sugiro a leitura da obra de Leonardo Sica, Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007 e recomendo agora, também, o trabalho de Raffaella Pallamolla, monografia vencedora do 13º Concurso de Monografias de Ciências Criminais do IBCCRIM, sob o título "Justiça Restaurativa: da teoria à prática", 2009).
  9. Ressaltei, todavia, que não há respostas prontas, mas uma só certeza: quanto mais encarcerarmos, mais encarceramento será demandado (ver de Zygmunt Bauman "Confiança e medo na cidade", Zahar, Rio de Janeiro, 2009).
  10. De toda maneira, aqui está o que interessa. A condenação direta, pelo procedimento do artigo 278 do PLS 156, com confissão (total ou parcial) e expressa dispensa de provas, ainda que o consenso opere sobre a pena mínima cominada, associa-se à política criminal do Estado Penal.
  11. E a política judiciária?
  12. Deixando de lado um tanto da discussão sobre ideologias autoritárias e de garantia, não é possível desprezar a vertente constituída pela pressão sobre o Poder Judiciário para julgar mais (em quantidade) e mais rapidamente (celeridade), de sorte a gerir os casos por meio de processos coletivos ou de medidas padronizadas (ver a "Campanha das Metas" do CNJ, no link).
  13. A questão problemática, no entanto, surge quando se observa no dia-a-dia dos foruns criminais que a adoção da oralidade nos procedimentos penais, a partir de 2008, atendendo antiga reivindicação dos juristas democráticos na esfera penal, "quebrou o ritmo" imposto pela demanda de aceleração processual (Lei nº 11.719/08, que modificou os procedimentos no atual CPP - ver link).
  14. Não há como "padronizar" os julgamentos das causas penais que se submetem ao procedimento probatório para determinar, em cada caso, a "verdade" dos fatos e assim adjudicar soluções em tese mais justas.
  15. E com a oralidade, postulada em audiência única (concentração), cada processo se transforma em um "pequeno júri", ainda que se trate de crimes sem maior gravidade. Demanda-se tempo que consome um no lugar de dois, três ou mais processos.
  16. O procedimento do CPP reformado em 2008 revela-se inadequado ao propósito de atender às Metas do CNJ!
  17. O problema não é novo ou original. O profundo processo político de reforma do Processo Penal na América Latina, em seguida às transições democráticas, foi estudado pelo Centro de Estudios de Justicia de las Américas (CEJA), que detectou as dificuldades inerentes à adoção da oralidade.
  18. Em 2004 participei da publicação coletiva da revista Sistemas Judiciales: una perspectiva integral sobre la administración de justicia (CEJA, ano 4, nº 7), sob o tema "oralidad y formalización de la Justicia".
  19. Já naquela ocasião havia farto material disponível para constatar que as dificuldades opostas ao processo civil não se equivalem às do processo penal. Em ambos os casos as questões controvertidas são delicadas. Ambas as esferas aspiram à "neutralidade" ideológica burguesa que faz pender a balança em favor do mais forte. Mas o processo penal consegue ser mais diretamente brutal e, como disse no primeiro post, cobra o preço da submissão em vida e liberdade.
  20. Assim, os caminhos da "antecipação de tutela" na seara penal (verdadeiro nome deste procedimento proposto) refletem a opção por contornar as dificuldades derivadas da oralidade que, apesar da promessa de audiência única, alarga sobremodo o tempo de resolução dos processos criminais e inviabiliza o atendimento das metas de gestão neoliberal das Justiças em estados periféricos e semi-periféricos.
  21. A questão está em definir o quanto de compatibilidade existe entre esta estratégia de política judiciária e as garantias constitucionais do processo penal e se a força ideológica neoliberal será suficiente para comprimir as garantias liberais, em uma tensão que decorre de escolhas políticas das quais ninguém está a salvo.

Nos próximos posts tratarei dos demais tópicos da palestra, sob o prisma das funções do processo e da técnica procedimental.
É isso!
Bom dia



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