Artigo de Jacinto Coutinho: HC substitutivo - Parte Final
Criminologia

Artigo de Jacinto Coutinho: HC substitutivo - Parte Final




Parte II - Final.


O número elevadíssimo de habeas corpus, contudo, tem várias causas, mas uma dentre elas é a principal (a dissintonia do CPP com a CR), a qual não se vai alterar sem uma mudança global do CPP e seu sistema inquisitorial. Logo, os writs, do jeito como estão alojados, hoje, no sistema processual penal, apareceram e são uma solução ? embora momentânea ? para um seriíssimo problema que envolve direitos e garantias fundamentais da maior relevância.
Voltar atrás, portanto, é sim possível ? em tempos solipsistas nos quais quem tem poder faz ou diz quase tudo que quiser ? mas sob o preço de negar, mas mais larga extensão, direitos e garantias fundamentais, aos que mais têm e aos que menos têm. Para tanto, já começam a aparecer nos tribunais ? o que se pode constatar facilmente pela simples leitura dos meandros dos arestos ? os que não estão dispostos a trabalhar em favor da causa do habeas corpus substitutivo porque o que não querem mesmo é a faina (e para esses seria com qualquer matéria, sem se importar com os efeitos que ela possa ter), mas também aqueles que não suportam mais o excesso de trabalho com tais habeas corpus, justo porque se dão ao esforço de tentar lutar por eles em face daquilo que representam para a cidadania. Esses, obviamente, vão à causa e reclamam da substituição (como era previsível desde há muito) olhando, de um lado, para um ajuste técnico da questão (muito difícil quando o problema, sendo como é, seja sistêmico), mas, do outro, na necessidade de efetivação da precitada reforma global do CPP, sem a qual não se consegue vislumbrar solução factível. Os prejuízos para a cidadania são muito altos e inexplicáveis ? e vai piorar ?, enquanto não se faz o que deve ser feito.   
Compreensível, tanto quanto inaceitável, então, é a referida posição de ministros e desembargadores na direção de tolher, desde logo e sem qualquer mudança do status quo, o uso invulgar do HC, não raro atribuindo-se a responsabilidade pelo excesso aos advogados simplesmente por usarem a garantia que a lei atribui aos pacientes.
Nesta matéria não há segredo: diante de um quadro de excesso de trabalho (embora ainda pareça pouco em face da estrutura conflituosa reprimida em uma sociedade sem meios de acesso à jurisdição) e restrições absurdas ao REsp e ao RExt, somadas à frequente deficiência da qualidade do controle das decisões nos tribunais de apelação, algo há de ser feito; e urgente.
Em verdade, em tal quadro a saída pelo HC foi uma tentativa paliativa de solucionar um problema que aponta à deficiência na distribuição da Justiça, mas que, por certo, não só não vai resolver muita coisa como, também, tende a colocar (é só verificar os números) em colapso o próprio julgamento do habeas corpus; e em risco os cidadãos porque se expõe a garantia fundamental (da qual não se pode abrir mão) às mesmas restrições dos REsp e RExt, além de outras. Tal risco, agora, vai-se fazendo realidade; e dolorida.
Como parece claro, a tendência dos ministros é caminhar na direção da restrição aos writs. Assim, para confirmar a previsão, o recente entendimento do STJ é no sentido de ser necessária (e pelo que se entendeu, imperiosa) a ?racionalização do habeas corpus, a bem de se prestigiar a lógica do sistema recursal?, de modo que as ?hipóteses de cabimento do writ são restritas, não se admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição a recursos ordinários (apelação, agravo em execução, recurso especial), tampouco como sucedâneo de revisão criminal.?[1] Em sendo assim, ?para o enfrentamento de teses jurídicas na via restrita, imprescindível que haja ilegalidade manifesta, relativa a matéria de direito, cuja constatação seja evidente e independa de qualquer análise probatória?, justamente porque ? e prossegue ? ?o writ não foi criado para a finalidade aqui empregada, a de discutir a dosimetria da pena?, sob pena de, segundo tal entendimento, o recurso especial se tornar totalmente inócuo.[2]
Argumenta-se, ainda, no sentido de que a utilização do writ fora da sua inspiração originária foi muito alargada pelos Tribunais e, diante desse pano de fundo, é preciso impor limites, em homenagem à própria Constituição da República de 1988, tudo para que ?não se perca a razão lógica e sistemática dos recursos ordinários, e mesmo dos excepcionais, por uma irrefletida banalização e vulgarização do habeas corpus.?[3]
Ademais, segundo a Min. Maria Thereza de Assis Moura, o habeas corpus não é panaceia (a expressão utilizada é dela), razão por que a usa para justificar que ele ?não pode ser utilizado como um ?super? recurso, que não tem prazo nem requisitos específicos?, pelo contrário, ele deve ? sim ? ?se conformar ao propósito para o qual foi historicamente instituído, é dizer, o de impedir ameaça ou violação ao direito de ir e vir?.[4]
Que o habeas corpus ? como se diz ? está dentro de uma ?via estreita? ninguém duvida. Daí sua excepcionalidade, a qual se tratou de superar para lhe atribuir uma estrutura ordinária que não tem e não deve ter, para fazer as vezes dos recursos. E tudo por uma razão banal: a precitada via estreita não acolhe (a não ser que se queira!) discussão em matéria probatória e outras, logo, a questão de fundo só vai apreciada quando o julgador (ou julgadores) quiser(em). Eis por que há tanto registro e distribuição de HCs originários e tão pouca concessão, em considerando o número global.
Deste modo, as dificuldades inerentes à estrutura não permitem a todos ? em que pese o número elevadíssimo de impetrações ? o uso do writ (a começar pela questão territorial e localização dos tribunais) e, quando isso ocorre, nem sempre a matéria é apreciada, pelo menos como deveria ser se de um recurso se tratasse, como é despiciendo discutir. Como disse Alexandre Morais da Rosa alhures, ?Ele [o HC] cura somente quem possui a receita ministrada por alguns médicos/advogados. O Imaginário do HC promove ainda o modelo. [mas] O ?mito? da beleza do HC se desfaz nos votos concretos.?
Por fim, há de se perceber que o STF, pela maioria dos seus ministros, ainda não apontou na direção da restrição, quiçá por força da matriz constitucional, embora a matéria já tenha sido ventilada na corte.[5] O STF, porém, por si só e em tal matéria, não consegue deter o imenso prejuízo que pode advir das decisões restritivas do STJ e outros tribunais, mormente em relação aos menos favorecidos.
Conclusão 1: mais uma vez os menos favorecidos pagam a conta pela balburdia e o descalabro do sistema processual penal brasileiro, embora, agora, com a tentativa de volta ao status quo ante dos habeas corpus, todos tendam a pagar, o que é muito pior porque se desloca o problema para outros lugares e implica colocar luz sobre o modus de funcionamento dos tribunais.
Conclusão 2: em face da CR o habeas corpus pode ter função substitutiva e é conveniente à cidadania, hoje, que, diante dos casos concretos, tenha, de modo que a volta ao seu lugar de origem, como se tenta fazer e se tenda a conseguir, é um retrocesso imenso que se não deve sustentar, pelo menos enquanto não se tem uma reforma global do CPP, com sua adesão ao sistema acusatório.
Conclusão 3: não se duvida que é preciso voltar ao sistema recursal, mas a ele é imprescindível a coerência, algo que se não tem no CPP de 41 e, assim, ofende-se a CR.
Conclusão 4: o sistema recursal só terá coerência, mesmo em uma matriz constitucional e, portanto, acusatória, se partir da maior extensão da presunção de inocência (como tenta fazer, hoje, o STF), de modo a permitir a absoluta prioridade aos casos urgentes e que se não coloque no mesmo patamar tempo razoável do processo com decisões imaturas.
Conclusão 5: mesmo porque se assim não for, as injustiças continuarão e mais uma vez se voltará aos habeas corpus substitutivos, com os advogados tentando (mesmo porque estão nos seus papéis e são contratados para tanto) até encontrarem um juiz com condições para os conceder.
Conclusão 6: saber-se-á, então e quem sabe, o que é ou deve ser o devido processo legal; e que ele não se presta ? nem deve se prestar ? tão só para alguns; muito menos para se fugir do enfrentamento às injustiças e de eventuais ofensas aos direitos e garantias individuais.


[1] HC 178371/ES, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 28/02/2012, DJe 12/03/2012.
[2] HC 135846/MG, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 06/12/2011, DJe 19/12/2011. No mesmo sentido é o entendimento nos seguintes julgados, todos de relatoria da Min. Maria Thereza de Assis Moura: HC 222703/MS, 157616/SC, AgRg no HC 240761/DF, AgRg no HC 239957/TO, HC 136079/MS, 139961/SP e 191598/AC.
[3] HC 181117/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 14/02/2012, DJe 24/02/2012. No mesmo sentido, HC 185724/MG, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 13/03/2012, DJe 20/03/2012. No mesmo sentido é o entendimento nos seguintes julgados, todos de relatoria do Min. Gilson Dipp: HC 200936/RS, HC 183465/MG, HC 236465/SP, HC 238983/SP, HC 223173/SP, HC 223145/SP, HC 222217/SC, HC 222070/ES, HC 239384/SP, HC 240141/RS, HC 215916/MG.
[4] AgRg no HC 239957/TO, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 29/05/2012, DJe 11/06/2012.
[5] Sobre o tema v., no Consultor Jurídico de 21.05.12 (www.conjur.com.br), do jornalista Marcos de Vasconcellos, a matéria ?Maior quantidade de HCs não justifica restrição?.



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