A Lei nº 12.403, de 04 de maio de 2011 tem sido assunto frequente entre os que atuam ou pretendem atuar na área criminal.
Apenas nesta semana conversei com vários jornalistas, alunos e advogados sobre tópicos direta ou indiretamente relacionados ao novo regime das cautelares penais.
Extraio somente dois aspectos, entre as várias questões que o novo modelo projeta, porque se trata de temas que preocupam o CNJ e as corporações profissionais, às vezes às voltas com atritos que resultam em acionamento do sistema de justiça criminal: a apresentação do preso ao juiz; e a prisão-captura, há muito conhecida, mas eventualmente negligenciada quando o caso escorrega para o corporativismo.
Antes destaco uma imagem com a qual trabalho rotineiramente em palestras. Proponho que vejamos a Constituição como um grande plano arquitetônico, algo como o projeto de Brasília, obra de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Mesmo o gênio de ambos não demitiu os responsáveis pela execução do projeto da (árdua) tarefa de transportar para o "real" aquilo que fora imaginado.
E no traslado da ideia ao concreto outros microprojetos são demandados.
Trata-se de "plantas", portanto também ideias, que especificam o que, em linhas gerais, havia sido "desenhado" por Niemeyer e Costa.Os arquitetos responsáveis pelo "detalhamento" do projeto funcionaram como legislador ordinário. Estes arquitetos foram necessários como o Congresso é relevante na mediação Constituição/Leis, pois articularam "imagem" e "real" tomando por base o macroprojeto (na metáfora, a Constituição), mas com evidente liberdade de conformação que, respeitados os traços mais abrangentes, ajustam a obra concreta às condições de vida planejadas, tal seja, orientadas ao futuro.
Em face de um "projeto" transformador, como a Brasília do fim dos anos 50 do século passado, sem dúvida muitas objeções foram opostas: da oportunidade à necessidade, passando pela argumentação da impossibilidade prática de "construir" a cidadela preconizada.
A síntese, sempre perigosa, pode ser traduzida por mim da seguinte maneira: cuidava-se de objeções culturais (algumas certamente de cunho apocalíptico, como tem sido certas análises dos efeitos da nova lei das medidas cautelares penais).
A simetria entre os dois termos da figura de estilo aparentemente para aí. É que, ultrapassado o marco autoritário do regime militar de 64, a Constituição de 88 se impõe perante a ordem jurídica brasileira. Não se trata de questão de preferência!
Disso parece evidente que as resistências culturais à execução do projeto constitucional de 88 (muito alterado por Emendas, reconheço) são eliminadas à medida em que o Congresso, atuando a política ordinariamente, cumpre o papel dos arquitetos responsáveis pelas linhas mais específicas da obra geral.
Em outras palavras. O Congresso (pela Lei nº 12.403/11) minucia o projeto geral inscrito na Constituição e oferece aos profissionais (Delegados, MP, Juízes, Defensores etc.) a indicação precisa dos materiais, ferramentas e itinerário a serem empregados e seguidos quando o tema consiste em intervenção provisória sobre a liberdade e os bens de pessoas titulares da presunção de inocência (art. 5º, inc. LVII, da CR).
Claro que ainda se justifica esperar um "microprojeto" mais amplo, sistemático, organizado de forma harmônica. Em suma, um novo Código de Processo Penal (o de 1941, alterado ou mutilado, conforme as "preferências semânticas de ordem ideológica", distorce o comando constitucional e afunda a "Brasília jurídica" em um pântano que traga as expectativas democráticas). Mas enquanto não se tem um novo código há uma edificação mais arejada e conforme a Constituição (conformada à presunção de inocência) no campo das medidas cautelares penais.
Posta a matéria nestes termos e definido o âmbito normativo, a partir da noção clara de que as medidas cautelares penais são, no geral, intervenções sobre direitos fundamentais de pessoas titulares da presunção de inocência, é a presunção de inocência a referência constitucional (extraída, pois, do "plano geral da obra") a que todos estamos atrelados: do legislador ordinário ao profissional responsável por prender, soltar, limitar a liberdade de locomoção etc.
Mas não se trata somente de concretizar a presunção de inocência, limitando os casos em que, na investigação ou processo, esta categoria é comprimida (na forma atual/revogada a presunção de inocência via-se esmagada pela lei e pelas interpretações autoritárias que o CPP supostamente autorizava).
Em conversa com o advogado Luis Guilherme Vieira (militante das questões institucionais da advocacia no Rio de Janeiro) lembrei a ele as importantes lições de Alessandro Baratta (Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, RJ, Revan, 2002). O extraordinário pensador italiano articulou as dimensões processual e penal do encarceramento às políticas de marginalização e controle social.
Entre a prisão em flagrante como "intervenção estacionária do conflito" (e aí a base da prisão-captura que, no Estado de Direito, por ser Estado e comprometer-se com a proteção dos interesses vitais das pessoas, impõe o dever de intervenção no momento em que uma infração penal está sendo praticada, para interromper-lhe a marcha e evitar suas consequências negativas) e a manutenção da custódia, que por sua vez imprime à marginalização uma força extraordinária, excluindo da vida social o preso e aqueles que dele dependem, há mais do que supunha a vã filosofia encarceradora!
Claro que a atual/futura redação do art. 310 do CPP não eliminou a prisão em flagrante ou fez sucumbir a prisão preventiva. Nada disso.
Seguindo parâmetros de racionalidade e levando em conta os abusos cotidianos, que multiplicaram as prisões processuais no Brasil e repercutem no debate sobre a limitação do habeas corpus no projeto de novo CPP (antigo PLS 156), adota-se o modelo em que a prisão captura permanece em vigor, como nas infrações de menor potencial ofensivo (art. 69 da Lei nº 9.099/95), mas a manutenção da custódia está sujeita ao "exame efetivo", pelo juiz, da sua necessidade.
Pessoas continuarão sendo presas em flagrante. A prisão em flagrante, como instrumento do poder de polícia (administrativo, portanto) dirigido a estacionar o conflito em andamento (infração penal) é a resposta da ordem jurídica aos atentados desferidos contra ela. É coercitiva.
E a reação do preso contra quem o captura, desde que verificada a hipótese de flagrante delito, é antijurídica. O ato de prender, por seu turno, estará conforme a ordem jurídica, constatada a premissa da legalidade (Teoria do Ordenamento Jurídico, Norberto Bobbio, São Paulo, Polis, 1989).
Manter a prisão, porém, passa a ser excepcional. E não se trata da excepcionalidade meramente retórica, tão em voga em textos de decisões, mas apartada da vida das centenas de milhares de presos provisórios no Brasil!
Reorientada pela presunção de inocência, a atividade judicial pertinente ao controle da legalidade da prisão deixará de ser (ou deverá deixar) meramente protocolar para tornar-se "exame efetivo" da legalidade (cuja violação desafiará o "relaxamento da prisão") e da necessidade da custódia, agora pela via do decreto da prisão preventiva.
É certo que tudo será examinado no nível de cognição superficial que as circunstâncias de uma prisão em flagrante sugerem. O profissionalismo dos Delegados e do Ministério Público, porém, haverá de substituir o amadorismo das intervenções às vezes negligentes ou negligenciadas, comodamente, por causa da convicção largamente compartilhada de que "quem está preso em flagrante assim permanecerá por um bom tempo!"
Esse "tempo" não existe mais. Demonstra-se, no âmbito da cognição superficial das cautelares, que a liberdade afetará a investigação ou o processo ou ao juiz não sobrará alternativa senão restituir a liberdade à pessoa presa.
Por fim, a lei nova avança ao impor maior cuidado e controle aos casos de prisão. Manteve-se, todavia, distante das obrigações assumidas pelo Brasil, internacionalmente, quanto à oportunidade associada à técnica deste controle.
Falo da apresentação do preso ao juiz.
Há anos defendo em palestras que as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil, especialmente desde 06 de julho de 1992, quando o Decreto nº 592 promulgou o Pacto de Direitos Civis e Políticos entre nós, exigem mudança no tratamento jurídico destinado ao preso. É que o artigo 9º, inc. 3, do mencionado pacto determina que a pessoa presa deve ser conduzida sem demora à presença da autoridade judiciária.
O âmbito normativo dessa disposição é mais abrangente que o do inc. LXII do art. 5º da nossa Constituição, que se limita a prever a obrigação de comunicação da prisão ao juiz competente. Apresentar o preso, levá-lo à presença do juiz, não é o mesmo que ?comunicar? a prisão ao juiz.
E a diferença não cuida de filigrana jurídica. Como o propósito está em assegurar a integridade física e psíquica do preso, prevenindo e evitando a tortura, além de possibilitar o controle da legalidade da prisão, a medida de cunho mais amplo viabiliza os referidos fins e incrementa a responsabilidade de todos os envolvidos com a custódia.
Ademais, e isso é igualmente fundamental, a apresentação poderá permitir o imediato contato do preso com um defensor.
Infelizmente, o mandamento convencional (Pacto de Direitos Civis e Políticos) não logrou penetrar na cultura de nossos profissionais do Direito, sequer daqueles responsáveis pelas reformas.
Releva notar que a Lei nº 12.403/11 mantém o regime da ?comunicação? e não o da ?apresentação?.