Prisão e Medidas Cautelares II
Criminologia

Prisão e Medidas Cautelares II


Síntese da entrevista à jornalista Cecília Oliveira, publicada na íntegra no blog "Arma Branca: o poder de fogo da informação" (veja no link ou na barra ao lado)
1) A nova lei que alterou o Código de Processo Penal (CPP) introduz medidas cautelares desconhecidas ou antes previstas em nosso direito apenas em casos bastante específicos, como nos de violência doméstica (Lei Maria da Penha). 2) As medidas estão relacionadas ao fim de fazer valer a regra constitucional da presunção de inocência (art. 5º, inc. LVII) e o objetivo, portanto, consiste em diminuir os casos de aplicação da prisão antes do trânsito em julgado da condenação. 3) A lei resulta de projeto elaborado pelo Executivo, mas alterado pelo Congresso. Em ambas as instâncias seguiu-se, em regra, a orientação predominante no STF (Supremo), que na última década tem reafirmado o caráter excepcional da prisão anterior à condenação. 4) A diferença é que a afirmação da presunção de inocência, na lei, com as novas medidas e o reconhecimento do caráter excepcional da prisão, passam a ser critérios que os juízes observarão para todos os investigados (durante o inquérito) e processados, e não mais somente para os que podiam contratar advogado e reclamar nos tribunais a violação da Constituição, privilégio de poucos afortunados, no Brasil. 5) Praticamente todos os crimes poderão estar sujeitos às novas medidas cautelares. Elas não poderão ser aplicadas, porém, aos casos em que a infração penal não for punida com pena de prisão. É a hipótese das contravenções penais. Para estas não cabe prisão preventiva, tampouco as novas medidas cautelares, mas já era assim com a Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei nº 9.099/95), desde a década de 90 do século passado. 6) A fiança é reabilitada como medida substitutiva da prisão em flagrante, em muitos casos, mas sofre restrições que decorrem também da Constituição. Assim, prisões em flagrante por racismo, tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos, por exemplo, são insuscetíveis de liberdade por meio de fiança (art. 323 e 324 do CPP com a nova redação). O homicídio qualificado é um crime hediondo e para ele não cabe fiança. 7) Visando conferir efetividade ao propósito de reservar a prisão provisória aos casos extremos, de necessidade comprovada, o Código de Processo Penal foi modificado e o juiz transformou-se, de direito, em garante da presunção de inocência. 8) Assim, vinte e quatro horas depois da prisão em flagrante o juiz deverá se pronunciar. Se entender que a prisão em flagrante é ilegal ele, juiz, deverá relaxá-la; na hipótese de ser uma prisão em flagrante legal, mas sendo desnecessário manter esta prisão [por meio de sua transformação em prisão preventiva] o juiz deverá deferir liberdade provisória, com ou sem fiança, desde que não seja hipótese de cabimento das medidas cautelares mais brandas, previstas no art. 319 do CPP (nova redação, que inclui a liberdade provisória com fiança, ao lado ou depois da insuficiência de várias restrições, como proibição de frequentar determinados lugares ou monitoração eletrônica). Estas medidas alternativas terão preferência à prisão preventiva, como forma de proteger o processo do abuso do direito à liberdade por parte do acusado. 9) Exemplo disso é a proibição de o acusado manter contato com pessoa determinada (art. 319, inc. III, do CPP ? nova redação). 10) A manutenção da prisão em flagrante pelo juiz observará, a partir da lei, a transformação desta prisão em flagrante em prisão preventiva. 11) Não há restrição à liberdade provisória sem fiança, que poderá ser deferida mesmo nos casos de crimes hediondos, como há algum tempo vem decidindo o STF. 12) Igualmente será possível deferir as medidas cautelares diversas da prisão, salvo a liberdade mediante fiança, às hipóteses de crimes hediondos, pois a restrição constitucional, reproduzida na lei, refere-se exclusivamente à fiança. 13) O ponto mais controvertido, certamente, é o dos casos em que caberá prisão preventiva, decretada pelo juiz quando o indiciado ou acusado estava solto ou por força da conversão da prisão em flagrante, como dispõe o art. 310, inc. II, do CPP (nova redação). 14) É que a partir de agora não será possível decretar a prisão preventiva, em regra, quando se tratar de investigação ou processo por crimes dolosos cuja pena máxima não exceda a quatro anos (art. 313, inc. I, do CPP ? nova redação). 15) Por isso, não cabe prisão preventiva: a) nas contravenções; nos crimes culposos; e nos dolosos cuja pena máxima seja igual ou inferior a quatro anos, como por exemplo no furto simples. 16) Nos crimes dolosos com pena máxima não superior a quatro anos, se o agente for preso em flagrante a prisão deverá ser comunicada em 24 horas ao juiz, mediante a apresentação do auto de prisão em flagrante (regra expressa e incontornável ? art. 306, § 1º, do CPP ? nova redação). E o juiz então, imediatamente, decidirá pela soltura, ou porque relaxará a prisão ilegal, ou porque substituirá a prisão em flagrante por liberdade provisória com ou sem fiança (ressalte-se que também aí, em regra, a fiança poderá ser arbitrada pelo Delegado de Polícia ? art. 322 do CPP ? nova redação); ou ainda porque aplicará alguma das medidas cautelares diversas da prisão. 17) Excepcionalmente neste caso o juiz poderá decretar a prisão preventiva, posteriormente, se substituir a prisão em flagrante por uma medida cautelar e o indiciado ou processado vier a descumpri-la (art. 312, parágrafo único, do CPP ? nova redação). 18) Assim, nestes casos de menor gravidade tenderá a desaparecer a prisão antes do trânsito em julgado da sentença. Há certa revolta dos setores mais conservadores, acostumados a ver a prisão processual ser usada como mecanismo de antecipação da pena, vingança ou meio de diminuir as chances de defesa dos presos. 19) A revolta, porém, não tem lastro quer na Constituição, quer no sistema de prisão e liberdade que está em vigor no Brasil desde 1995 (Lei dos Juizados Especiais Criminais), porque com a instituição da suspensão condicional do processo para crimes com pena mínima não superior a um ano de prisão [que em regra tem pena máxima não superior a quatro] o sistema inibia a decretação da prisão preventiva e obrigava à soltura imediata do preso em flagrante. Os precedentes do STF são reiterados neste sentido. 20) O problema estava em que apenas os mais afortunados indiciados ou processados dispunham de meios para fazer valer suas garantias perante os juízes, que com frequência observavam a lei anterior, apesar de sua flagrante inconstitucionalidade (por ferir a presunção de inocência). 21) A partir de agora não há mais a lei a amparar medidas de inversão da presunção, de vingança ou antecipação das penas. 22) A incidência excepcional da prisão preventiva não livrará de serem presas pessoas que no futuro venham a ter a inocência proclamada. Mas ao restringir os casos de prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória reduz-se a possibilidade da prisão injusta. 23) Para a democracia a lei nova nos atualiza perante as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos da última década e o Brasil cumpre sua obrigação internacional, cuja violação acarreta sanção, dando decisivo passo na implantação do Estado de Direito. É minha opinião. 24) Em um contexto em que proliferam prisões em casos para os quais, ao final, os juízes terminam condenando os acusados a penas restritivas de direito (um dos exemplos é o tráfico de drogas privilegiado, em relação ao qual o STF já decidiu ser possível condenação a penas alternativas/substitutivas, portanto sem recorrer-se à prisão ? art. 33, §4º, da Lei nº 11.343/06 ? réu primário e não integrante de organização criminosa), a nova lei tenderá a reduzir significativamente o número de presos provisórios e evitar manifestas injustiças. 25) A discussão sobre se mais prisões provisórias correspondem a mais segurança é complexa, mas um dado elementar mostra que se trata de um falso mito do que de algo empiricamente verificado: as prisões provisórias multiplicaram-se em doze anos, nem por isso diminuiu a sensação de insegurança. Tampouco esta sensação aumentou desde que o STF decidiu que em hipóteses de pena curta de prisão, como no mencionado tráfico de drogas ?privilegiado?, era possível aplicar penas alternativas. Não há relação direta entra uma coisa e outra, mas o espaço é limitado para este debate específico. 26) A liberação das pessoas presas e que, segunda a lei nova, não poderão continuar assim a rigor deveria ser levada a cabo prontamente. Creio, todavia, devido às resistências constatadas, que caberá aos Defensores, especialmente os Defensores Públicos, postular aos juiz a imediata incidência do novo modelo legal. Nada impede, porém, que o juiz decida sem provocação, de ofício. Isso é desejável e salutar. Ou ainda que o juiz decida a partir de requerimento do Ministério Público, que tem o munus constitucional de velar pela presunção de inocência e escrupulosa aplicação da lei. 27) Claro que há imperfeições. A lei ainda assegura a prisão preventiva com base em cláusula genérica de ?garantia da ordem pública? (art. 312, caput, conforme a nova redação do CPP), mecanismo de constitucionalidade duvidosa que, se não for aplicado criteriosamente, poderá frustrar a adoção do novo sistema. 28) E mesmo as medidas alternativas à prisão preventiva eventualmente, e em decorrência de uma permanência indesejável de interpretação inquisitorial, poderão estimular a ampliação do controle social, impondo restrições às pessoas que, na vigência do modelo anterior, aguardariam em liberdade o resultado de seus processos. Cara Cecília, em linhas gerais é isso. Espero ter contribuído para esclarecer as dúvidas. Encerro sublinhando que mesmo nos meios de comunicação social ainda existem muitas dúvidas e perplexidades sobre o alcance e consequências da lei nova, mas em geral, entre os meios que circulam nas classes médias, tem prevalecido uma cobertura que aposta no medo social, como que a pretender pressionar o Congresso a retroceder. Faz parte da luta democrática resistir a esse tipo de interpretação e é neste campo de luta que as forças que confiam nos direitos humanos deverão se impor. Cordialmente, Geraldo Prado Desembargador da 5ª Câmara Criminal Professor de Direito Processual Penal da UFRJ Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD)



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