Criminologia
A juíza que absolveu uma única vez! Artigo do prof. João Carlos Castellar
Com sua fina sensibilidade o professor e advogado João Carlos Castellar capturou mais do que as lentes da defesa liberal e justa da liberdade de expressão enxergaram na condenação do Pussy Riot, na Rússia, por protestar contra Putin: a naturalização do fato de existir uma magistrada que em toda a sua carreira tenha absolvido alguém apenas UMA VEZ!
A incorporação da prática condenatória automática à vida comum não escapou aos olhos de Castellar e por isso vale nos perguntarmos: o quanto, realmente, estamos distantes da realidade alheia, que criticamos com aspereza?
Segue o artigo.
Geraldo Prado
A JUÍZA QUE SÓ ABSOLVEU
UMA VEZ, A OPINIÃO PÚBLICA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Por João Carlos
Castellar
Os jornais noticiaram que três jovens russas integrantes de
uma banda punk foram condenadas a
dois anos de prisão (já estão presas há cinco meses) porque teriam invadido a
mais importante igreja ortodoxa de Moscou e lá gravado um protesto musical
contra o Presidente Putin.
Elas têm advogado que as representam no Tribunal, razão pela
qual não vou comentar o caso em si, exceto para dizer que parece realmente
ofender o princípio iluminista da proporcionalidade a medida da pena que
receberam, tanto mais quando esta é confrontada com a conduta que teriam
cometido, tida por ofensiva ao sentimento dos religiosos ortodoxos ou à honra
do Presidente.
Inúmeros foram os atos públicos de repúdio a tal condenação,
havendo manifestações em várias metrópoles pelo mundo afora e mesmo
pronunciamento de chefes de estado, entre outros, do Presidente Barack Obama,
dos Estados Unidos e Ângela Merkel, da Alemanha, todos reclamando de violação a
Direitos Humanos, nomeadamente à liberdade de expressão e manifestação do
pensamento artístico e político.
O que mais me espantou, porém, não foi este aspecto do caso. Assustou-me,
sobretudo, não ter sido objeto de indignação na mídia em geral a terrificante
notícia de a juíza que sentenciou as moças, a magistrada Marina Sirova, ser ?conhecida
por só ter concedido uma única absolvição
em sua carreira?![1]
Note-se que através do gancho que representado pela grave
sentença penal, a imprensa comenta os exageros da era Putin, aborda possíveis
desmandos e outras exorbitâncias, mas não dá destaque ao fato de que uma
magistrada de carreira só tenha absolvido um único réu em toda sua atividade
judicante. Esta faceta do acontecimento parece a mim muito mais impactante do
que a severidade intrínseca da condenação ou da repercussão global que obteve.
É verdade que o juiz está adstrito à lei e esta por vezes
pode ser dura: dura lex, sed lex. Por
outro lado, como diz o constitucionalista espanhol Roberto Gargarella, ?graças
às incertezas que existem em matéria interpretativa, os juízes podem tomar
decisões com uma margem de manobra extraordinariamente grande?[2].
Mesmo assim, ainda que não se assegurasse ao Juiz a
possibilidade de interpretar amplamente o texto legal ? e na Rússia não deve
ser tão diferente daqui ? permanece a indagação que não quer calar: seria
possível, aceitável, razoável, sem que configurasse algum tipo de abuso a ser
reparado por órgãos corregedores, um magistrado julgar sistematicamente em desfavor
dos acusados em geral? Aliás, é crível tenha um juiz absolvido somente uma vez
em toda sua vida profissional, tanto mais se tratando do exercício da judicatura
em Moscou, capital de uma das oito maiores potências do globo? Ao que narra o noticiário,
sim, isto está efetivamente ocorrendo.
Esta surpresa, no entanto, não se justifica. Afinal, mutatis mutandis, é isso, lamentavelmente, que nos dias que correm se espera dos
Juízes criminais brasileiros: expecta-se que condenem e que o façam inclementemente.
Se o magistrado absolve quando a opinião pública ?pede? que puna, se solta quando
se espera que mantenha preso, se concede qualquer benefício quando o condenado
é rotulado ?perigoso?, sofrerá o corajoso e infausto juiz virulentas críticas,
será apontado como irresponsável, receberá injúrias pessoais, correndo o risco
até mesmo de se tornar alvo de procedimento disciplinar por seu ato, não raro considerado,
inclusive no entender dos seus pares, como rebeldia ou temeridade.
Para que este distorcido quadro tenha ganhado entre nós contornos
de tal modo acentuados, a atuação do Ministério Público tem sido tão relevante
quanto deletéria. Com efeito, este órgão vem confundido a sociedade que deve
representar com a chamada opinião pública, o que vem trazendo trágicas
consequências à realização da Justiça.
De antemão, é preciso que se distingam os conceitos de
sociedade e de opinião pública, esclarecendo que esta última carrega forte
carga ideológica, posto que, mesmo nascendo de um debate público, por ser opinião não coincide com a verdade, mesmo
porque erigida através canais ideologicamente orientados. Como anota Bobbio, a
opinião pública não é a opinião do povo, uma vez que os espaços em que se forma
não são autogovernados, mas administrados por potentes burocracias[3].
Tampouco é a opinião da sociedade, que se constitui num sistema no seio do qual
uma população compartilha de uma cultura e estilo de vida comuns, em condições
de autonomia, independência e autossuficiência relativas[4]. Diferem,
portanto, a sociedade, cujos interesses o Ministério Público patrocina no
processo penal, de alguma opinião pública que nela venha a se formar.
Deste modo, como soe acontecer, atuando em nome de certa
opinião pública o Ministério Público se vê desprovido da neutralidade de que
deveria estar imbuído, findando por não representar a sociedade em sua
totalidade, mas apenas a determinada corrente de pensamento político, ou
melhor, político-criminal, que por sua vez tem se afinado com doutrinas de
?tolerância zero? e não com outras de perfil despenalizador ou
descriminalizante.
Nesse embalo punitivo sobressai claro que o Ministério
Público busca fazer a Magistratura de sua refém. O Parquet pede prisões, condenações e penas altas que exige sejam
integralmente cumpridas. Não sendo estes reclamos atendidos, será o juiz destinatário
da pretensão alvo de críticas, admoestações e, em alguns casos, até mesmo de
suspeitas de comportamento irregular, pois os órgãos de mídia, que constroem a
opinião pública ideologicamente orientada nos moldes que o Ministério Público
defende, se encarregam de forma-la nesse sentido, desestabilizando a
independência de que deve estar revestido o magistrado na sua tarefa de dizer o
direito.
Não é por outras razões que a independência dos juízes e dos
tribunais se constitui num dos princípios estruturantes do Estado Democrático
de Direito, tendo por finalidade precípua defender o Poder Judiciário dos
demais Poderes do Estado. Na expressão de Carlos Alberto Conde da Silva Fraga,
visa essa independência a assegurar a liberdade de decidir, ou seja, à
imparcialidade do magistrado, quer perante as partes em litígio, quer perante a
opinião pública, quer, até mesmo, perante uma excessiva carga de trabalho que
possa levar a uma menor ponderação do caso sub
judice e, consequentemente, a uma decisão menos justa ou menos correta[5].
Livre de injunções para cumprir a espinhosa função de julgar de
maneira honrada e respeitada, o Magistrado não precisa punir sempre e
severamente. E quando tiver que fazê-lo deve agir com equidade. A Justiça não é
instrumento de vingança pessoal ou social. O magistrado tem que ser livre para
julgar: nesse mister só deve se ater à lei e ao contido no processo; ouvir os
argumentos das partes legitimadas para atuar; e decidir depois de realizar a
ponderação acerca do peso de cada prova que estiver ao seu dispor.
Significativo que a notícia de que uma juíza moscovita que
absolveu uma única vez em sua vida faça com que se rememorem estes valores,
precisamente no momento em que o País assiste em tempo real a um dos mais
importantes julgamentos de sua História. E nessa hora em que os mais altos
magistrados da Nação estão em fulgurosa exposição é preciso que não se esqueça
de que a opinião pública não é parte nessa causa sub judice. E mais: se acaso, burlando os controles de segurança,
ela tiver conseguido se fazer presente no Plenário do Supremo Tribunal Federal
necessário que seja expulsa de lá, pois um Poder Judiciário a ela submisso será
fraco e essa tibieza retira dos jurisdicionados qualquer possibilidade de lutar
contra toda ordem de injustiças, pois a injustiça feita a uma pessoa é ameaça
para todas as demais.
[1]
O Globo, 18/08/12, p. 35
[2]
GAGARELLA, Roberto. Jueces rigurosamente vigilados. El País: Madrid, 23/01/2003, p. 12.
[3]
BOBBIO, Norberto et ali. Dicionário de Política. 12ª ed.
Brasília/São Paulo: Imprensa Oficial SP/Editora UNB, 2002, vol. 2, p. 842.
[4]
JOHNSON, Allan G. Dicionário de
Sociologia ? guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editores, 1997, p. 213.
[5]
FRAGA, Carlos Alberto Conde da Silva. Sobre
a Independência dos Juízes e Magistrados. Lisboa: Vislis Editores, 2003, p.
25.
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