Criminologia
Anistia ou amnésia: um debate necessário
No último dia 29 de abril o STF decidiu por sete votos a dois, no julgamento da ADPF 153, manter o entendimento pelo qual os crimes de tortura, desaparecimento e homicídio praticados por agentes do Estado durante a ditadura de 1964 ("crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar"), se inscreviam entre os crimes políticos e conexos afetos à anistia definida pela Lei n. 6.683/79.
O Conselho Federal da OAB postulou declaração/interpretação do §1º do artigo 1º da referida lei que não ofendesse preceitos e princípios fundamentais, consagrados pela Constituição.
O julgamento acirrou o debate - e os ânimos - em torno de nosso passado recente e provocou enfrentamentos retóricos nos mais variados ambientes entre os que querem deixar "o passado no passado" e aqueles que entendem que somente "o conhecimento integral do que se passou" na ditadura militar propiciará ao Brasil construir "objetivos seguros e um amplo compromisso consensual... para que tais violações não se repitam nunca" (prefácio ao Plano Nacional de Direitos Humanos - PNDH 3).
Ao lado da tensão desta decisão do STF há o PNDH 3, constituído após ampla e transversal discussão entre setores das várias esferas de Governo e a sociedade civil organizada, a partir da convocatória de abril de 2008 (Decreto Presidencial e Portaria 344 da Secretaria Especial de Direitos Humanos - SEDH), que culminou com a 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, realizada em Brasília entre 15 e 18 de dezembro de 2008.
Precedida por mais de uma centena de encontros e Conferências Nacionais temáticas, a 11ª Conferência gestou as bases do PNDH 3, que hoje está no centro das discussões, alvejado intensamente pelas forças autoritárias que atravessam a sociedade brasileira e jogam o jogo das pemanências, ainda que sob a veste nova de um modelo de administração de conflitos que dispensa a rude transparência das ditaduras militares e de outros matizes que caracterizaram a América Latina no século XX.
Entre eixos prioritários e estratégicos, e ações e compromissos irrenunciáveis, o PNDH 3 propõe lutar pela erradicação da tortura (Diretriz 14 do Eixo Orientador IV) e por uma política da memória (Eixo Orientador VI).
Há muito tempo, em palestras, aulas e debates públicos eu venho defendendo, no campo mais restrito do funcionamento do Sistema de Justiça Criminal, que o caráter negociado de nossa transição, em um contexto em que as forças democráticas dispunham de muito pouca margem de manobra e poder de influência e em um momento em que o principal desgaste do governo militar brasileiro resultava do anunciado fracasso de sua política econômica altamente concentradora, incapaz de se esconder atrás de algum falso "milagre econômico", pesou na manutenção e difusão de uma subjetividade altamente autoritária.
O contexto global também contribuiu para isso, em minha opinião, concertando as bases do que Michel Foucault e Gilles Deleuze denominavam de "fascismozinho ordinário" (Filósofos na Tormenta, Elisabeth Roudinesco, Zahar, 2007, p. 10).
Recompor as bases da "transição", pela via da tessitura de novos vículos a partir da franca exposição de nosso passado recente, este pode ser um dos caminhos para a edificação de formas de sociabilidade que nos ajudem (à sociedade brasileira) a entender e a superar sua inclinação pela solução violenta e amarga dos conflitos, ao preço do sacrifício constante dos interesses dos grupos sociais mais vulneráveis em benefício das elites, que não deixaram de existir porque o termo foi condenado ao "politicamente incorreto", nesta gramática perversa e tendenciosa do neoliberalismo e da globalização de mercados e marginalização dos pobres do mundo.
Começo hoje a publicar posts em que busco articular as questões acima (julgamento do STF, PNDH 3) à Justiça de Transição e a outros temas correlatos. Tenho por horizonte o futuro e sei o quanto o assunto é delicado, pois muitos dos que hoje, honesta e sinceramente, estão envolvidos na concretização dos direitos humanos no Brasil conheceram, por modos variados, o outro lado, da violência de Estado, sem embargo das formas de convivência social, econômica, política e mesmo familiar com torturadores e chefes da ditadura. Mexer com o passado, inevitavelmente, é mexer com as pessoas e seus sentimentos e é nosso dever agir com sobriedade.
Minha perspectiva está em desatar nós para que as mudanças que estão em curso em nossa sociedade produzam de fato uma cultura de respeito aos direitos humanos que condene a repressão penal e a violência estrutural, estas sim, a serem "o passado a ser deixado no passado".
Vamos ver o que acontece!
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