Poder negocial (sobre a pena), Common Law e processo penal brasileiro: Meta XXI, em busca de um milhão de presos!?
Criminologia

Poder negocial (sobre a pena), Common Law e processo penal brasileiro: Meta XXI, em busca de um milhão de presos!?


Ontem eu dividi mesa com o professor Guilherme Madeira, em Seminário promovido em São Paulo pelo IBCCRIM, AJUFE e EMAG sobre o Projeto de Lei 156 do Senado (novo Código de Processo Penal).
Coube falar de poder negocial e julgamento antecipado, conforme está previsto nos artigos 278 e 279 do projeto.
Quero compartilhar algumas considerações, que posteriormente serão objeto de um ensaio.
1. Comecei por colocar minha divergência, sempre respeitosa, com a tese de que o exercício do poder negocial, quer na modalidade da disponibilidade sobre o objeto do processo, quer pelo viés da opção até pelo não processo (oportunidade) devam ser vistos como inerentes à estrutura acusatória, ou ao menos como parte integrante de uma "tradição acusatória (adversarial) do Common Law". Entendo que não há relação entre uma coisa e outra.
2. De início porque não há definição mais "indefinida", escorregadia, do que a da chamada "estrutura acusatória" do processo penal.
3. Isso é assim porque a compreensão da própria ideia de Sistema no direito não está pacificada. A leitura do trabalho clássico de Mario Losano (Sistema e estrutura no Direito, WMF Martins Fontes, São Paulo, 2008), revelava, já em 1968, os desacordos semânticos sobre a noção de Sistema no Direito que atravessaram os séculos e que justificam os vários ângulos de observação do fenômeno jurídico (não se pode reclamar a "exclusividade" de um ponto de vista). Isso, por exemplo, sob a ótica de uma "organização estruturada de um objeto ou da ciência que estuda tal objeto" ou conforme a ideia de sistema como "conjunto de normas reunido por um elemento unificador". E assim vai!
4. Mirjan Damaska, por sua vez, irá sublinhar o modo como cada grupo social reivindicará para si a adoção de sistemas processuais, em geral de cariz acusatório, sem que seja possível justapô-los ou definir pontos comuns acima de qualquer divergência teórica (Las caras de la justicia y el poder del Estado, Editorial Juridica de Chile, 2000).
5. E as dificuldades não diminuem quando o olhar pousa quase exclusivamente sobre o modelo em vigor nos Estados Unidos. Michele Taruffo reafirma, em 2007, suas convicções da década de 70 do século passado, de que o "mito adversarial" sustentado por uma certa "tradição" do common law não corresponde ao mundo real (e por isso é um mito) e tampouco é tão tradicional assim (como se constituem as tradições? "A invenção das Tradições, Hobsbawn) [El proceso civil adversarial en la experiencia americana, Temis, Bogotá, 2008).
6. Em um contexto aparente de tantas incertezas, os estudiosos podem ser levados a crer na conclusão de Juan Montero Aroca, jurista e juiz de primeira linha, sobre a "inutilidade do princípio acusatório para a conformação do processo penal" (Proceso Penal y Libertad, Thomson/Civitas, Pamplona/Navarra, 2008).
7. Eu continuo acreditando na validade do conceito, com todas as possibilidades de desencontros de significados, porque o mundo real, das pessoas que são encarceradas e julgadas, reclama a imposição de limites ao poder do Estado de encarcerá-las e de matá-las, de uma vez ou em conta-gotas.

8. A prova disso eu extraio da violenta reação, pós 11 de setembro, nos Estados Unidos. A vigorosa tradição do processo adversary não impediu por bastante tempo o desenvolvimento de procedimentos penais em sigilo, com violação do juiz natural, restrições ou supressões do direito de defesa e do contraditório, e perpetuação de detenções "provisórias" sem acusação formal. Sem falar na tolerância com as provas obtidas por meios ilícitos (Luis P. Salas, La Ley Patriótica USA, em Terrorismo y Proceso Penal Acusatório, Tirant Lo Blanch, Valencia, 2006).
9. O retorno, malgrado lento, às bases mais humanizadas do processo penal nos Estados Unidos, no entanto, tem sido orientado pela fidelidade à "tradição" adversary de processo penal, que serve como parâmetro para questionar e invalidar ações arbitrárias, de índole inquisitorial, no marco do Estado de Direito.
10. Assim, o Sistema Acusatório é como a face de uma moeda: não existe sem a "coroa", cuja presença iminente sempre incomoda, porque relembra (história) as estratégias de infiltração das práticas autoritárias, em avanço muitas vezes destemido sobre os direitos humanos (pesquisa em andamento sobre As matrizes autoritárias do Processo Penal brasileiro na UFRJ - blog ao lado).
11. E é por isso que em cada caso, conforme a história de cada grupo social, alguns aspectos do complexo em que se constitui o Sistema, são mais relevantes que outros. As histórias brasileira e latino-americana, em geral, denunciam a parceria entre juiz e acusador (durante quanto tempo se confundiram no mesmo sujeito processual?) a reivindicar que coloquemos acento na distinção das funções principais do processo, para que coadjuvações do gênero não inviabilizem o direito de defesa, em prejuízo dos direitos fundamentais!

12. A iniciativa judicial do processo, denominada entre nós de "jurisdição sem ação", o domínio sobre a imputação pelo juiz, apelidado de mutatio libelli, o controle judicial da inércia do MP são "evidências" do que afirmo. São pistas do inquisitório encontradas cotidianamente nas prateleiras dos cartórios criminais.
13. Mas o que importa agora é o Sistema Acusatório, que tem sua história alargada no Common Law. E o poder negocial.
14. Em um trabalho de fôlego John Lagbein, Renée Lerner e Bruce Smith vão descolar o "plea bargaining" da estrutura acusatória tradicional (History of the Common Law: the development of anglo-american legal institutions, Aspen, 2009).
15. O pragmatismo norte-americano, no século XIX, ditado pelas dificuldades da organização do Júri para dar conta dos dilemas cada vez mais complexos, gerados por uma sociedade industrial em desenvolvimento, é somente uma das hipóteses aventadas por estudiosos ingleses e norte-americanos (Langbein, op. cit. p. 709).

16. O certo, porém, e aí são dois professores da Universidade de Chigago que irão se pronunciar a respeito, é que durante muito tempo neste mesmo século XIX, nos Estados Unidos, os juízes resistiram intensamente a admitir a confissão - e a correspondente "barganha" - como mecanismos de exclusão do Júri, dispensa do ônus da prova pela acusação e, de quebra, não aplicação da Sexta Emenda! [Albert Alschuler e Andrew Deiss, em Breve historia del jurado criminal en los Estados Unidos, Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia penal, ano VIII, n. 14, Buenos Aires, Ad Hoc].
17. John Langbein irá ressaltar que justamente este foi o período em que o direito, não como prática social, mas como ciência ou saber instrumental, passou a se interessar e a tomar como objeto de análise o processo criminal: "It was not until the third quarter of the nineteenth century that the modern form of the adversary trial appeared with frequency in the bulk of ordinary criminal cases. This is some one hundred or 150 years after the introduction of those institutions - rules of evidence, procedure, expansion of the rights of defense counsel, and other factors - normally associated with the lawyerization of the criminal procedure" (p. 709).
18. Um pouco como o processo penal "gata borralheira" de Carnelutti (Observaciones sobre la imputación penal, em Cuestiones sobre el proceso penal, Libreria El Foro, Buenos Aires, tradução da obra de 1950, p. 135), quando comparado ao saber desenvolvido no âmbito do Common Law pelos demais ramos do direito, lá o criminal não ocupou espaço destacado, salvo como prática social.
19. E é neste contexto de prática social, com maiores ou menores resistências nos tribunais e, agora, inversamente, com maior resistência na doutrina em confronto com a ampla aceitação pelas corporações profissionais (juízes, advogados e MP), que o poder negocial conquistou seu espaço no direito anglo-saxão.
20. A questão jurídica nos Estados Unidos não é colocada no âmbito da "ação penal"! A discussão jurídica - e não política, em sentido estrito - diz com o direito ao júri (Sexta Emenda) e a relação, difícil, entre a solução da causa e o "mito adversarial" de que este tipo de processo é mais adequado à deteminação da "verdade" (ver Taruffo, obra citada, cap. 1, que neste semestre está sendo estudado pelos meus alunos do Mestrado da UNESA).
21. Não se pensa com categorias ou termos continentais, como oportunidade ou disponibilidade, mas sim com a eficiência punitiva que periodicamente reclama a legitimidade do MP (eleição), em um contexto bastante distinto do nosso!
22. Vale dar uma lida no cap. 4 do Adversarial Legalism: the american way of law, de Robert Kagan, (Harvard, 2003) e nas demandas por mais segurança (ou na manipulação do medo) entre as classes médias norte-americanas, para compreender o salto extraordinário da população carcerária e sob vigilância nos Estados Unidos, dos anos 60 para cá, e como isso influenciou o adversarial legalism na área criminal.
22. Assim, atrelar o poder negocial, ainda que sob a forma de procedimento sumário, ao modelo acusatório importa em juntar duas coisas que não comungam a mesma identidade, tampouco precisam do mesmo "ar" para viver.
23. Claro que o projeto de CPP não obedece a algum capricho de seus autores, respeitados no meio acadêmico e profissional, e indiscutivelmente comprometidos com os direitos humanos e a democracia (a biografia de cada um deles os antecede).
24. É necessário tentar entender os fios que unem a proposta de poder negocial à reformulação completa e complexa de nosso modelo de persecução criminal.
Na minha fala, em São Paulo, avancei hipótese sobre o assunto, que ficará para o próximo post, porque este já está grande em demasia!



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