Poder Negocial...: Em busca de um milhão de presos!? Parte V
Criminologia

Poder Negocial...: Em busca de um milhão de presos!? Parte V



Após a literalmente dura partida de ontem, e da merecida vitória da Seleção Brasileira, é hora de voltar a pensar na aridez do dia a dia... pelo menos até a próxima sexta-feira, quando enfrentaremos Cristiano Ronaldo & Cia!
E assim eu sigo com as notas sobre a palestra proferida no Seminário promovido em São Paulo, no dia 02 de junho último, pelo IBCCRIM, AJUFE e AMAG, sobre o projeto de Código de Processo Penal em tramitação no Senado (link no primeiro post da série), acerca do Poder Negocial.


Hoje eu desenvolvo um pouco mais, mas ainda de maneira tópica, uma das questões que tenderá a atravessar o processo penal, em sua versão negocial. Trata-se da "ação estratégica" das partes em busca de persuadir o adversário a compor e de como os instrumentos legais e as práticas de "convencimento" esbarram em uma tradição inquisitória forjada sobre a ideia da verdade.
  1. Com efeito, não há novidade em se compreender o processo guiado pelo princípio dispositivo como um "jogo".
  2. Em 1950, Piero Calamandrei, professor na Universidade de Florença, escreveu seu famoso artigo denominado "O processo como jogo", em homenagem ao professor Francesco Carnelutti (Rivista di Diritto Processuale, vol. V, parte I, CEDAM, Padova, ano 1950, p. 23 - 51).
  3. Naquela oportunidade e, como quase sempre, muito além de seu tempo, Calamandrei propunha investigar o processo civil orientado pelo princípio dispositivo não por critérios estritamente abstratos, consagrados nos "manuais escolásticos", conforme rígidos esquemas que raramente aderiam à realidade forense!
  4. Interrogar o cotidiano das atividades processuais e perceber nas ações das partes seus objetivos imediatos e também os indiretos, e as táticas para alcançá-los, dizia muito do complexo em que de fato o processo se constitui e, a partir deste conhecimento seria possível ordenar medidas e prevenir danos em busca de uma jurisdição dirigida à Justiça.
  5. Assim, o passo inicial da investigação do processualista italiano foi dado no sentido de interrogar as partes acerca de seu objetivo final. A resposta, de que Carnelutti irá se desagradar ante sua própria concepção de processo e sua crença moral nas atitudes humanas e nos (bons) propósitos dos "atores" processuais, é sem dúvida esta: as partes buscam a vitória!
  6. O processo não é, segundo este ponto de vista, o instrumento para necessariamente conceder a vitória a quem tem razão ("para obter justiça não basta ter razão"). Pelo enfrentamento de ações guiadas por objetivos distintos e praticadas para tornar realidade estes objetivos, o processo se encerra em uma sentença que, segundo Calamandrei, "não é uma aplicação automática das leis aos fatos", mas bem o resultado de "uma competição renhida", em que não prevalecem apenas as boas razões, mas principalmente "a habilidade técnica para fazê-las valer".
  7. Pelo menos com duas décadas de antecedência Calamandrei antecipou-se a Carnelutti para destacar na sentença "o ato de eleição (escolha) pelo juiz" da versão prevalecente entre as opostas pelas partes neste duelo intelectual em contraditório.
  8. Como disse, não há novidade alguma nisso, mas com muita frequência a compreensão do novo passa por revisitar o antigo e, quiçá, como adverte Boaventura, "descobrir com atraso o que sabíamos quando éramos considerados atrasados"!
  9. E a redescoberta aqui diz com táticas e estratégias que as partes empregam para obter um resultado processual nem sempre condizente com aquilo que a doutrina processual penal acostumou-se a definir como ponto de encontro das forças em movimento no processo: a verdade!
  10. Quando o autor se apresenta em juízo no começo do processo o faz por meio da petição inicial, que no relato dos fatos e em sua estruturação geral contém o "desenho estratégico", em nível probatório, daquela que deverá ser a caminhada dele, autor, em busca de uma sentença procedente (Perfecto Andrés Ibañez, Valoração da prova e sentença penal, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 39). É natural que seja assim, pois não se concebe que o autor esteja em juízo desacreditando em sua própria tese.
  11. E, claro, em um processo penal acusatório ou inquisitório, cuja premissa é de que a sentença esteja apoiada em provas dos fatos penalmente relevantes, sempre será possível detectar distorção na seleção dos meios probatórios introduzidos pelas partes ou pelo juiz, uma vez que todos estes sujeitos, conforme estejam previamente comprometidos com alguma hipótese (o juiz, naturalmente, no procedimento de matriz inquisitorial), irão eleger as provas que em sua opinião habilitam a justificar a tese defendida ou eleita. Fugir disso significa buscar uma Justiça para além das possibilidades (características) humanas!
  12. No marco do processo penal orientado pela produção de provas, a estratégia da acusação em um primeiro momento estará voltada, portanto, à demonstração da fiabilidade da imputação. As provas serão propostas com este objetivo e, sendo admitidas, aportarão no processo para "instruir" o juiz consoante "a língua falada" pela parte autora. O que não é contraditório com o convencimento, pelo MP, ao longo do processo, de que a tese inicialmente esposada é inviável, pois está "em contradição" com a prova produzida ao longo da instrução. Por isso a evidente liberdade de o MP abandonar a versão acusatória e postular a absolvição do acusado.
  13. Em linhas gerais, esta é a legitimação democrática que, com algum esforço, é possível extrair do garantismo penal, fundado em uma filosofia analítica e em seu entendimento "político" sobre o papel da verdade no processo penal, com as amarras que eticizam o processo, em busca de imunizá-lo contra os abusos inquisitoriais (inércia judicial, proibição das provas ilícitas, respeito à dignidade do acusado na relação com as atividades probatórias etc.).
  14. Não há dúvida de que a distância entre ficção jurídica e realidade, mesmo no marco do Garantismo, é abissal e se alarga em um país como o nosso, em que a defesa da enorme maioria dos acusados depende de Defensorias Públicas que não são prioridade para os governantes, ou mesmo da boa vontade da advocacia dativa. A garantia da paridade de armas converte-se apenas em mais um "chavão teórico", presente nos novos "manuais escolásticos", porém quase desaparecida da realidade do Sistema de Justiça Criminal.
  15. Tal distorção, todavia, acaba incrementada na Justiça Penal de caráter negocial.
  16. É que o novo horizonte estratégico, neste caso, não está ditado pela seleção de provas para influir no convencimento do juiz.
  17. Não há provas neste contexto! Elas estão banidas do processo negocial, não porque sejam inúteis ou irrelevantes, mas pela razão de dificultarem os acordos probatórios!
  18. Em sua crítica dura ao debate, ao seu juízo supérfluo do ponto de vista científico, sobre se há sentido em falar em um princípio acusatório, Montero Aroca (referido em post anterior, nesta série) sublinha que a "mítica" que envolve o adversary nos Estados Unidos é desmentida diariamente pelo apelo a um procedimento não adversarial, o plea bargaining, em que se empenham tão ferozmente todos os envolvidos, incluindo o juiz e o próprio advogado do réu, que pressionam este último a "aceitar" o acordo e assim dar conta do maior número de casos possível (La inutilidad del llamado principio acusatorio para la conformación del proceso penal, obra citada, p. 81).
  19. A partir da ideia-chave do modelo negocial, de que partem todos, incluindo juiz e defensor, de que "o acusado se presume culpado" (Montero Aroca, obra citada, p. 83), os sujeitos processuais empenham-se decididamente a convencer o réu a "acordar" (!?).
  20. E nisso estão ordinariamente baseadas as estratégias de convencimento que, já em 1950, Calamandrei advertia, focalizando o uso tático (lateral) das medidas cautelares. Em outras palavras: em um contexto de "jogo" em que o resultado não depende de provas, mas da persuasão do adversário para forçá-lo a aceitar o acordo, o uso das providências cautelares desviadas da função de proteção processual revela-se uma arma extraordinária!
  21. E aí eu alerto não somente para o emprego das cautelares na investigação, para onde as atividades processuais são decididamente deslocadas (antecipadas), em um ambiente de menor influência da defesa e menos permeável ao contraditório, mas também para a chamada Blitz-krieg dos procedimentos cautelares (Calamandrei), esgrimida como meio de coerção psicológica.
  22. Bernd Schünemann irá destacar o "efeito hidra" das cautelares, no processo penal alemão, como fonte de estímulo aos acusados a aceitarem a "conformidade", o acordo penal (La reforma del proceso penal, Dykinson, Madrid, 2005, p. 33)!
  23. O sufocamento do investigado, na fase preliminar, com adoção de medidas cautelares que retiram dele suas fontes de renda e sobrevivência e, não raro, a própria liberdade, não apenas serve para angustiá-lo, sob o ângulo psicológico, e enfraquecê-lo, tornando factível e "interessante" o acordo, como funciona ainda como uma espécie de "radar das infrações penais desconhecidas", que seriam recolhidas por esta "rede" de providências cautelares de modo bastante simétrico às investigações inquisitoriais do procedimento eclesiástico da Idade Média!
  24. Não por acaso o comportamento processual que se espera do acusado, na negociação penal, igualmente remete à Idade Média: a confissão!
  25. E como escapar à conformidade, ao acordo, em condições tão desfavoráveis?
  26. O Conselho Nacional de Justiça levantou dados, em 2009, sobre a correspondência entre prisões cautelares e as que se originam em condenação. O quadro fala por si e pode ser consultado no link deste post:
  27. Schünemann sublinhará, na Alemanha, que em 1980 47,5% dos presos provisórios não eram condenados posteriormente (obra citada, p. 32). E especificamente sobre os acordos penais, o professor alemão referirá que "substituíram a investigação da verdade material a ser realizada em um juízo oral, como base da sentença, pelo consenso do participante... mediante a submissão dele ao marco de uma sentença acordada previamente" (obra citada, p. 44).
  28. Este método abarcava na Alemanha de um quarto a um terço dos casos penais, em fins dos anos 80. Em pelo menos a metade deles havia prisão provisória (idem, p. 45).
O post de hoje está longo e há muito o que falar sobre as estratégias para a negociação. Daí a necessidade de seu desdobramento. Vamos a isso nos próximos dias, intercalando com a torcida para que a seleção seja bem sucedida, mais ao estilo Brasil e menos ao de seu treinador!
Bom dia!



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